As diferentes faces da Violência Obstétrica

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Imagem do projeto fotográfico de Carla Raiter “1:4 – Retratos da Violência Obstétrica”

No terceiro artigo da série sobre Violência Obstétrica, a coluna divulga a conferência proferida pelo Prof. Dr. João Paulo Dias de Souza (Departamento de Medicina Social/FMRP-USP) durante a abertura da III Jornada de Assistência Materno-Infantil e Cirurgia Ginecológica da MATER (Centro Referência em Saúde da Mulher de Ribeirão Preto). O evento foi realizado no dia 17 de outubro de 2014, no Centro de Convenções de Ribeirão Preto-SP. Confira!

As diferentes faces da Violência Obstétrica
João Paulo Dias de Souza

Boa noite a todos e todas que estão aqui presentes hoje, me sinto muito honrado por estar ministrando esta conferência. Entendo que colocar esse tema em Conferência de abertura de uma Jornada como essa indica para a nossa comunidade, não só da Mater como a nossa comunidade maior aqui da cidade e da região, um comprometimento da instituição Mater com esse tema. Então agradeço mais uma vez à organização pelo convite, me sinto muito honrado.

O tema que me foi pedido para falar hoje é sobre as diferentes faces da violência obstétrica. E eu gostaria de começar essa conferência falando sobre o termo violência obstétrica. É um termo bastante forte; é o termo que vem sendo muito usado pelos movimentos sociais latino-americanos para denunciar práticas que, de alguma forma, oprimem mulheres durante o momento da assistência ao parto, mas é um termo que, de certa forma, isola e direciona o foco da atenção em uma categoria profissional, principalmente, os obstetras. Então, de certa forma, existe um entendimento da comunidade internacional, e que vocês vão ver mais para frente, e que a própria Organização Mundial da Saúde (OMS) faz uma opção diferente: faz a opção de não usar esse termo “violência obstétrica” e fala de “desrespeito, abusos e maus tratos” durante a assistência ao parto. Porque talvez dessa forma a gente consiga entender um pouco melhor que esse fenômeno é produto de uma situação complexa, de ambientes tóxicos, que colocam em lados opostos parturientes e profissionais de saúde. Profissionais de saúde não apenas, de forma alguma, limitado aos obstetras.

Eu gosto de começar a falar sobre temas relacionados a humanização da assistência lembrando a audiência que a cada ano cerca de 300 mil mulheres perdem suas vidas em todo o mundo por causas relacionadas a gestação, parto e puerpério. E lembro que essas mortes são apenas a ponta de um “iceberg”, onde existe muita morbidade e muito sofrimento. Estima-se que mais de dois milhões de mulheres em todo o mundo passem por complicações muito graves, a cada ano, relacionada com gestação, parto e puerpério.

Esses casos de morte e de morbidade são importantes porque eles representam e materializam, de maneira muita extrema, a desigualdade que ainda existe na nossa sociedade entre homens e mulheres. Então, entendemos a morbidade materna grave e a mortalidade materna como uma expressão máxima dessa desigualdade e da opressão que, de alguma forma, nossa sociedade ainda produz sobre as mulheres.

A gente gosta de lembrar e contextualizar que a morbidade materna grave e a mortalidade materna estão muito além da saúde, e entram muito mais no espectro das questões de direitos humanos. Isso porque a imensa maioria dessas mortes são evitáveis. Reduzir a mortalidade materna e a morbidade materna é uma tarefa complexa, e provavelmente muito mais relacionada a questões de igualdade de gênero, e de acesso à renda, de acesso à educação, do que pode fazer nosso setor saúde. Mas nós, como parte do setor saúde, temos um papel importante, que é o papel de tentar mitigar, transformar e enfrentar determinantes sociais que levam a essa condição de maior risco de mortalidade ou morte evitável através de uma oferta de um serviço de saúde seguro e de qualidade. E no contexto em que eu insiro essa nossa conversa, serviço de saúde de qualidade é aquele que é capaz de oferecer um cuidado digno e respeitoso para as mulheres.

O interesse nesse tema vem de alguns anos da comunidade internacional e a gente vive um momento em que isso está muito evidente e atual. Uma revisão sistemática recente, que foi conduzida pela Organização Mundial de Saúde nos últimos meses, mostra que as situações relacionadas a desrespeito, abusos e maus-tratos constituem uma barreira importante para que mulheres procurem instituições para a assistência ao parto. Nós estamos em um contexto onde a atenção obstétrica ou atenção ao parto no Brasil é praticamente universalmente hospitalar e institucional, mas existem lugares no mundo aonde isso não é o caso, onde essa infraestrutura ainda está em construção. Eu tive uma oportunidade de visitar a Etiópia, onde há localidades onde as instituições de saúde estão prontas, mas elas não têm demanda, porque as mulheres não procuram. E não procuram muito por conta de terem medo de, nesses lugares, passarem por situações de desrespeito e abuso. Mas é interessante observar que nos lugares que já passaram por isso e que atingem, como no Brasil, uma porcentagem muita alta de cobertura hospitalar ao parto, existe um movimento reverso, tanto no Brasil, como na maior parte dos países desenvolvidos. Existe um número crescente de mulheres que prefere não ter o trabalho de parto e parto numa instituição de saúde. Então, olhamos para essa questão dessas duas maneiras, para entender esse fenômeno que se passa aqui no Brasil, que é uma demanda crescente de mulheres que querem voltar a ter o parto em casa, na comunidade, e com uma assistência não centrada no médico.

Essa primeira revisão sistemática apontou para o problema: “Se a gente quer melhorar a assistência obstétrica, e se a gente quer manter e trazer mais mulheres para as instituições de saúde, a gente tem que enfrentar a questão do desrespeito, abusos e maus-tratos nas instituições de saúde”. Isso então gerou uma outra revisão sistemática que trata exatamente sobre maus-tratos durante o parto em instituições de saúde. É uma outra revisão da OMS, de 2014, que procura identificar na literatura os estudos que abordaram a questão. E, interessante é que os estudos foram realizados em mais de 30 países diferentes, cobrindo quase todas as regiões do mundo. Então, na verdade, é um fenômeno do qual podemos dizer que é global; e eu acho que agora estamos abrindo os olhos e nos apercebendo de sua existência.

Nessa revisão sistemática, busca-se identificar essas diferentes faces, e fazer uma descrição da tipologia do desrespeito, abusos e maus-tratos durante o parto. Que vai desde situações mais extremas, como o abuso físico, o uso da força e a contenção física, a situações mais sutis que ainda assim constituem desrespeito e abuso, relacionadas por exemplo, à linguagem e à maneira de tratar as mulheres.

E aqui eu convido vocês a fazerem a uma reflexão comigo, que é desenvolver a capacidade de reconhecer o desrespeito, abusos e maus-tratos quando ele está institucionalizado. Eu quero dizer que a “institucionalização do desrespeito, abusos e maus-tratos” é quando ela se torna invisível para a gente, por conta de práticas que muitas vezes se tornam rotineiras e a gente muitas vezes não se percebe delas. Então quando a gente fala, por exemplo, de contenção física, e talvez a gente imagine uma pessoa sendo amarrada com uma corda, mas a institucionalização da contenção física, por exemplo, na cesárea, onde você coloca a paciente nessa posição (de braços abertos) e coloca esparadrapo e tudo mais, essa é uma contenção física, que pode ser contra a vontade da mulher e contribui para uma experiência negativa. Então a gente tem que tentar tirar uma lente, que é a lente das práticas que estão incorporadas, como disse nossa professora da Escola da Enfermagem, o conhecimento que está cristalizado, a gente tem que tentar ter um outro olhar, e ver que algumas das nossas práticas podem ser entendidas e experienciadas por mulheres como situações de desrespeito e abusos.

Então além do abuso físico, há situações de abuso verbal, ou seja, a relação que se dá entre mulheres e provedores de cuidado e que muitas vezes é feita por uma comunicação inefetiva; que se coloca como uma barreira e isola as mulheres, fazendo com que a experiência do cuidado seja extremamente fria e despersonalizada, muitas vezes levando a problemas até na formação da díade e da vinculação do binômio materno-fetal.

E por aí vai… A tipologia feita nessa revisão sistemática aborda questões de desrespeito e abuso produzido, por exemplo, em situações relacionados a estrutura física ou a cultura organizacional da instituição. Também a dificuldade que muitos profissionais têm, ou muitos serviços têm, de que sua prática seja aderente às melhores práticas, que sejam baseadas em evidências, então os padrões profissionais de cuidado. Existem uma série de evidências que mostram que algumas das práticas que algumas vezes nós aplicamos são desprovidas de evidências científicas que as suportem. Quando a gente não realiza uma prática que seja baseada na melhor evidência científica disponível, a gente está falhando em atingir padrões profissionais de cuidado e, isso sim, pode constituir também uma forma de desrespeito e abuso.

Sem falar de situações como o estigma e discriminação contra as mulheres pobres, ou mulheres imigrantes, ou parte de alguma minoria, mulheres com baixo nível educacional ou que fazem parte de grupos especiais como, por exemplo, as mulheres vivendo com HIV. Estas são particularmente vulneráveis e constituem um grupo de risco para sofrer alguma forma de desrespeito, abusos e maus-tratos.

Bom, tendo feito esse panorama global para contextualizar a situação, queria falar um pouco do desrespeito, abusos e maus-tratos no Brasil, de uma forma muito tranquila, lembrando que eu faço parte da categoria profissional que normalmente é tida como a vilã da história. Então, a gente tem que abordar a questão de uma forma muito tranquila, buscando o diálogo, que vai ser o tônus que a gente vai dar nessa abordagem, nessa conferência.

Lembro vocês do caso que aconteceu em Torres-RS, o caso da Adelir, um caso que provavelmente mais de 90% dos obstetras concordaria que, nesse caso, a cesárea provavelmente era o procedimento mais seguro para essa mãe, mas que configurou e ganhou uma proporção muito grande, porque ele saiu da esfera médica e adquiriu o aspecto de violação de direitos humanos. E ele retrata bem a situação que a gente vive, onde existe uma judicialização extrema da nossa prática. Eu acabei não colocando na minha apresentação porque eu recebi no final da tarde, mas hoje eu soube de um outro caso que aconteceu aqui perto. Eu faço parte de um grupo do Ministério da Saúde que trata questões relacionadas a cesárea, e hoje soubemos que, em Jaboticabal-SP, uma gestante entrou com um pedido de mandado de segurança para que ela tivesse uma cesárea. Isso porque lá em Jaboticabal existe um programa da Unimed de estímulo ao parto normal. Eles fizeram uma intervenção que conseguiu reduzir a taxa de cesárea a 40%, e isso está sendo utilizado pela Agência Nacional da Saúde Suplementar como um modelo para outros lugares. E hoje saiu a decisão judicial contrária ao pedido de mandado de segurança. E isso está sendo tratado assim: “A que ponto nós chegamos para discutir a via de parto”. Talvez esse até seja um caso extremo, para essa mulher talvez fosse melhor ter a cesárea, dado o estado mental que levou a chegar a esse ponto, ao ponto de solicitar um mandado de segurança. Retrata o grau das nossas relações, então acho que é um grande sinal de alerta para todos nós.

E quando a gente fala de desrespeito, abuso e maus-tratos, é algo, como eu falei, que saiu do meio médico e do meio da saúde e se tornou um fenômeno social. A gente lê sobre isso na Folha de São Paulo, no Estado de São Paulo, escuta na rádio CBN. Passou a ser algo que passa a ser debatido pela nossa sociedade. E aqui eu trago, a partir de matérias de divulgação, os resultados de uma pesquisa que foi realizada em 2010, já há alguns anos, sobre a ocorrência de desrespeitos e maus-tratos durante o parto. Esta pesquisa aponta que uma em cada quatro mulheres relata maus-tratos durante o parto, cerca de 25%. Quero lembrar que estabelecer uma prevalência dessas situações é algo extremamente complexo, porque você pode se sentir abusado e se sentir desrespeitado mesmo tendo sido tratado com educação e cordialidade. É algo subjetivo, mas que, de alguma maneira, uma parcela substancial das mulheres se sente tratada de forma inadequada ou abaixo das expectativas e que contribui para uma experiência negativa desse momento que seria tão importante para elas.

Vejamos então as principais queixas das mulheres: fez exame de toque de maneira dolorosa; negou ou não ofereceu algum tipo de alívio para a dor; gritou; não informou sobre algum procedimento; negou atendimento; xingou ou humilhou. São queixas frequentes e as mulheres relatam. Eu acho que a gente tem que olhar esses dados, se a nossa audiência aqui é uma audiência predominantemente de profissionais da saúde, mas não exclusiva, eu acho que a gente tem que olhar com tranquilidade isso daqui e tentar entender o que que isso tá dizendo para a gente.
Entre as frases mais ouvidas e mais relatadas sobre desrespeito, abusos e maus-tratos aqui no Brasil existem situações ou frases como essas daqui: “Não chora, que no ano que vem você está aqui de novo”. Eu lembro de ter escutado isso em ambientes que trabalhei. “Na hora de fazer, não chorou nem chamou a mamãe, porque está fazendo isso agora?”; “Se gritar eu paro agora o que estou fazendo e não vou te atender”. Acho que eu já escutei essas três frases. Essa última eu nunca tinha escutado: “Se gritar vai fazer mal para o seu neném e o seu neném vai nascer surdo”. Bom, são exemplos, e esse fenômeno hoje chega ao ponto de em alguns lugares e alguns países está entrando na legislação. E no Brasil existem três projetos de lei que tramitam tentando tipificar a violência obstétrica de alguma maneira e enquadrando isso na legislação. E especificamente na Venezuela existe um estatuto, equivalente ao Estatuto do idoso ou Estatuto da criança, que é um estatuto do direito da mulher estar livre da violência. E tem um capítulo nesse estatuto que fala sobre as situações de desrespeito, abusos e maus-tratos, e seguindo a tradição latino-americana eles chamam isso de violência obstétrica.

Queria convidar vocês a pensar e refletir um pouco sobre práticas que nós fazemos e que poderiam ser consideradas, se feitas de forma rotineira e desnecessária, como submeter a mulher a algum grau de desrespeito ou abuso. Por exemplo, os procedimentos desnecessários ou prejudiciais: internação precoce; indução do trabalho de parto sem indicação médica e sem autorização da mulher; impedir a presença do acompanhante; impor repouso no leito; a questão da tricotomia e do jejum; não oferecer métodos de alívio da dor, e aqui a gente não está falando só de método farmacológico, como a gente já falou hoje; uso da ocitocina sem indicação, e assim vai…. uma série de situações que, se a gente dá um passo atrás e consegue se colocar no lugar da mulher, a gente conseguiria entender: “Por que eu estou sendo submetida a toques repetidos e sem consentimento?”

Um exemplo de procedimento que é muito utilizado e problematizado é a episiotomia. A episiotomia em algum momento da história foi introduzida na prática sem uma evidência científica que recomendasse sua introdução. Muitas vezes, a episiotomia facilita o trabalho de quem está assistindo ao parto, principalmente nas situações em que a paciente está em posição litotômica, pois ela cria uma veia de acesso. No entanto, as evidências vêm mostrando que na verdade a episiotomia é muito mais prejudicial do que algo que contribui para um desfecho favorável. Mas o que eu quero falar é que a episiotomia é um procedimento cirúrgico, menor, mas é um procedimento que tem um impacto potencial no períneo da mulher. Ele é o mais frequente de ser realizado sem autorização da mulher ou obtenção do consentimento da mulher. Nos anos que eu trabalhei como obstetra, e um dia da semana, eu era chefe de um plantão obstétrico, na época que eu estava na Unicamp, eu acho que todas as cesáreas ou procedimentos que eu me envolvi, principalmente os maiores, de alguma forma eu sempre obtive o consentimento da mulher. Mas, em retrospecto, foram provavelmente muito poucos ou quase nenhum, talvez, consentimento propriamente dito eu tenha obtido para realizar uma episiotomia, até quando eu foi abandonando a prática deste procedimento. Mas assim, todos nós, se a gente pensar quantas vezes a gente solicitou realmente um consentimento para uma episiotomia, a gente vai ver que é realmente uma porcentagem pequena dos casos que a gente acaba fazendo isso. Sem generalizar, mas é o procedimento que a gente mais falha em obter um consentimento formal da mulher.

Mas violência ou desrespeito, abusos e maus-tratos durante o parto não se resume exclusivamente a mulher. Tem um outro ser que tá vindo, que é um recém-nascido que também é frequentemente submetido a procedimentos desnecessários. É uma pena que o recém-nascido não consiga protestar como as mulheres estão protestando. Então a gente tem que lembrar de que muitas vezes os recém-nascidos passam por procedimentos que são desnecessários.
E a gente pode fazer uma reflexão sobre a credeização de rotina que a gente faz, tentando prevenir a conjuntivite gonocócica. E a gente provavelmente vive em um meio que tem uma prevalência muitíssimo baixa e por qualquer critério técnico que a gente puder pensar em termos de números necessários para tratamento ou outro, você não encontra critério para manter uma intervenção de rotina e universal. Então se a gente fosse prevenir alguma conjuntivite, talvez fosse melhor usar um antibiótico para clamídia do que algo contra a gonorreia. Enfim, só para a gente pensar, dar um passo atrás, refletir sobre essas práticas que estão institucionalizadas. E claro, quando você não maneja de forma adequada intercorrências e oferece um cuidado sub-ótimo, a gente deixa de respeitar a mulher de uma forma plena.

Mas falar de desrespeito, abusos e maus-tratos sem falar do fenômeno social que ele é no Brasil, seria fazê-lo de forma incompleta e a gente deve então entender o que que é isso. Como eu falei, a gente já saiu do meio médico ou do meio dos profissionais da saúde, e isso se tornou um movimento social. Movimento social e movimento social das mulheres, particularmente, que tem tirado a nossa categoria e a categoria dos profissionais de saúde da zona de conforto. São as mulheres que estão empurrando a gente, e para um lado que é o de rever nossa posição.

Existem movimentos que falam, por exemplo, no sentido de categorizar e classificar violência obstétrica, ou como a gente prefere, desrespeito, abusos e maus-tratos, como violência contra a mulher: é uma forma de violência contra a mulher, então, é dar um nome a isso. Outros movimentos falam sobre a autonomia do corpo e o processo de decisão, então o resgate da autonomia das mulheres nessa situação. E esse outro movimento que, vamos dizer assim, fala do impacto provocado pela episiotomia na vagina (imagem da campanha “Períneo Íntegro“), então esse é um movimento que está trabalhando para o abandono da episiotomia de rotina e quem sabe da episiotomia em geral, ou revendo a prática da episiotomia. Então, esses movimentos sociais estão tirando a gente da nossa zona de conforto, eu acho que a gente tem que escutar isso e de alguma forma, reagir, não no sentido de brigar, mas de ver como a gente pode compreender.

Um grande tônus desses movimentos sociais é tornar visível o problema. Existe um grande estímulo à denúncia dos casos de desrespeito e abuso. Aqui não dá muito bem para a gente ver, mas são hematomas ou equimoses produzidas pela manobra de Kristeller. E eu tenho encontrado uma ou outra fotografia falando de que isso é um movimento que está nas ruas, e na Internet, muitos deles falando da experiência negativa que se transformou o parto. Todo mundo já viu isso daqui, não tem nenhuma novidade, mas é aquele caso de uma mulher que não queria ter uma episiotomia e tem uma episiotomia que desce até o meio da coxa (foto de Carla Raiter, em destaque nesta coluna). Esse também é um desses casos emblemáticos para mobilizar as mulheres em torno da questão. Existe uma associação internacional que está buscando trazer isso de uma forma mais visível criando repositórios em todo o mundo para receber e acolher denúncias de casos de desrespeito, abusos e maus-tratos durante o parto. Então esse é o repositório brasileiro (Mapa da Violência Obstétrica), que vai quantificando os casos, tem um botão ali que diz assim: “Eu quero denunciar e enviar um relato” e eles estão classificados em categorias que vão desde cesariana desnecessária; bebê no berçário sem necessidade; impedir o contato pele a pele; violência verbal e ameaças; humilhação; falta de privacidade e respeito; piadinhas sobre qualquer condição da mulher; acompanhante; doulas; enfim. É um movimento que está na rua e a gente tem que escutar isso de alguma forma e procurar melhorar.

E há cerca duas semanas a OMS fez um pronunciamento baseado nessas revisões sistemáticas que foram feitas nos anos anteriores e em alguns estudos que agora começam a ser publicados. A OMS lançou uma declaração que reafirma o direito que toda mulher tem ao melhor padrão atingível de saúde, o qual inclui o direito a um cuidado digno e respeitoso. A declaração, que está em português, é um chamamento, conclamando os governos e parceiros no desenvolvimento para colocar isso na agenda tanto de pesquisa como de ação para combater essa condição. Chamamento para começar programas específicos direcionados para isso e enfatizar os direitos das mulheres a uma assistência digna e respeitosa durante toda a gravidez e parto. Chamamento para pesquisa, chamamento para ação.

Então esse aqui é meu penúltimo slide e eu queria fazer um resumo porque a gente ouviu falar muita coisa, mas como que a gente transforma as palavras em ação? Bom, a primeira coisa é a gente parar de negar que o problema existe. Vamos reconhecer que é um problema real. E qualquer serviço de saúde, por mais humanizado que seja, ele pode gerar situações de desrespeito, abusos e maus-tratos. A gente deve caminhar no sentido de buscar o diálogo com as diferentes partes interessadas, e aqui, muitas vezes quando eu falo nesses fóruns e às vezes eu sou chamado para falar em atividades da FEBRASGO e tenho uma posição dessa, muitas vezes a gente fica em uma situação um pouco comprometida com o corpo profissional. E quando eu sou chamado para falar em movimentos sociais, fica também em uma situação delicada. Por quê? Porque a gente tá tentando acabar com essa falsa dicotomia que se criou e se coloca entre profissionais de saúde e as usuárias do serviço de saúde. É uma falsa dicotomia, e a gente tem que lutar para acabar com isso daí. Mas praticamente o que isso significa? Vamos imaginar que eu faço a gestão de um serviço obstétrico de uma Santa Casa de uma cidade de médio porte, o que que eu tenho que fazer? Reconhecer o problema e buscar criar um grupo local para prevenção e combate do desrespeito, abuso e maus-tratos, preferencialmente com a participação e controle social, tô aqui falando de representantes das mulheres com a finalidade de empoderar as mesmas e desarticular esses ambientes tóxicos. A gente que trabalha (ou trabalhou) em centro obstétrico, percebemos que muitos centros obstétricos são ambientes tóxicos para a equipe e para os usuários. Então a gente tem que desarmar esse ambiente, essa bomba, e reconhecer o perpetrador que é o profissional de saúde que pode estar passando por uma situação de “burn out” ou então está trabalhando horas prolongadas com baixa remuneração, ele também é vítima desse processo. Então, a gente tem que reconhecer isso e buscar ferramentas para apoiar e tratar esse perpetrador do desrespeito, abusos e maus-tratos para quebrar esse ciclo. E buscar criar um plano de ação que seja realista, com indicadores bem definidos e padrões negociados para compatibilizar o ideal e o possível, por exemplo, com as questões relacionadas à infraestrutura. E como sempre: monitorar, reavaliar e buscar sempre a mudança.

Eu espero não ter cansado vocês com esse tema. É um tema de grande importância. Como mensagem final eu queria dizer a vocês que nós, como comunidade profissional, sejam os obstetras, anestesistas, médicos de famílias, enfermeiras obstétricas, enfermeiras não-obstétricas, obstetrizes, profissionais de saúde em geral e as mulheres, nós precisamos encontrar um processo pelo qual nós retomemos a capacidade de dialogar e promover experiências seguras e positivas relacionadas ao parto e nascimento. Colocar em primeiro plano o resgate à dignidade e autonomia das mulheres, buscando um cuidado de qualidade. E eu queria deixar a mensagem final de que cuidado de qualidade e cuidado seguro é aquele que é também respeitoso e humanizado.

Muito obrigado!


Para citar esse artigo:
Souza JP. As diferentes faces da Violência Obstétrica – Conferência de abertura da III Jornada de Assistência Materno-Infantil e Cirurgia Ginecológica da MATER Ribeirão Preto-SP. RESC 2015 Mar;2(3):e84.